quinta-feira, julho 29, 2010

Lar...

Acabei de chegar de um reencontro com um amigo meu que estava na estrada desde junho. Veio passar dois dias em Belém, e já vai pegar estrada de novo mas dessa vez por pouco tempo, semana que vem está aí. Mas não é bem isso o que eu vou falar. Ou melhor, talvez sim...ainda não sei muito bem...
Enfim, nesse mais de um mês que ele passou se atualizando no Rio, ele arranjou um tempinho para fazer um retiro espiritual com um grupo, numa comunidade ribeirinha, super afastada da capital. E quanto mais distante da capital, mais simples e natural a vida é. Pelo menos, eu acho...
De qualquer forma assim foi a experiência dele, ele começou a me descrever como era a comunidade há mais de cinco anos atrás e como está agora com o advento da energia elétrica e da famigerada e adorada televisão. Mas enfim, também não é bem disso o que vou falar. Talvez até seja, mas ainda estou vendo no que vai dar...
Enfim (de novo), ele me contou a forma de organização deles, da convivência na comunidade... como era bonito ver a transmissão de conhecimentos de pai para filhos e de mãe para filhas. Cada um transmitia à seus descendentes a sabedoria que rege o trabalho, que por sua vez, rege a vida em comunidade. Com descrições assim:
- são divididos como se fossem numa hierarquia de trabalho: alguns saem para pescar, outros, quando chegam os peixes, salgam para durar dias, outros fazem as redes de pesca, outros ordenham vacas para conseguir leite. Alguns cozinham o peixe, outros, se precisarem, pescam camarões e vão vender para comprar leite... "se na tua casa tiver leite e na da vizinha tiver café, vocês fazem um café com leite e tomam"...todos dizem que são parentes, basta você ser próximo vira parente, o equivalente, aqui em Belém a chamarmos de tia e tio os pais de nossos amigos... a ajuda é mútua, a comunidade funciona sobre e sob suas próprias leis morais...a noite, quando não tinham nada pra fazer, um visitava a casa do outro, ou ficavam em rodas pela comunidade com as crianças correndo, e todas as crianças eram cuidadas por todos os adultos...
Depois, como todo assunto, mudou. Começamos a falar sobre o desejo dele de morar sozinho e de uma dúvida que ele tem se ele vai conseguir sentir a casa que ele vai morar como um lar. E começou a dar um exemplo de uma tia que saiu da casa do pai, durante 11 anos morou em alguns lugares sozinha, mas quando pisou na casa do pai novamente sentiu "- aqui é meu lar". Apreensivo ele toma o exemplo da tia como uma possibilidade do que possa acontecer com ele. Dele não encontrar um lar fora da casa que sempre viveu com os pais...
Eu entendi a apreensão, é muito difícil a vida, ou sei lá quem ou o quê, definir um lar pra gente e assim seremos marcados o resto da vida por ele....o exemplo da tia dele me deixou também apreensiva, mas por outro motivo: eu não me senti assim. E comecei a pensar que ou eu sou uma desgarrada nata ou o conceito e o sentimento de lar é diferente para cada um... preferi ficar com a segunda hipótese.
O que aconteceu comigo, por exemplo, se eu for contar desde que nasci até o lugar que eu moro hoje, eu já morei em 11 lugares diferentes, eu brincava com a mamãe dizendo que ela era uma verdadeira cigana urbana, pois de uns anos pra cá, mal a gente tinha se acostumado a uma nova casa, quando víamos, ela já estava com a cuíra de mudança. Eu até comecei a me acostumar e curtir o ritual de passagem de um lar para outro. E não pensem que é fácil, pra mim pelo menos, era sempre muito difícil... Afinal, não é só você que transforma o lugar onde mora em lar e sim o lugar também te escolhe e te transforma como senhorio. Pelo menos, eu acho. Não acho só não, eu também senti e sinto isso...
Sempre que nos mudávamos eu passava por uma espécie de ritual de passagem. Me sentia por mais ou menos um mês em suspenso, como se eu não tivesse um lugar só meu, como se eu não tivesse um lar, como se eu não tivesse casa. Essas sensações me causavam muita angústia. Era ruim, até que me acomodova ao lugar e ele à mim.
Na minha última mudança, a mais significativa pois tinha resolvido morar sozinha pela primeira vez, eu senti isso, e senti medo...e muitas outras coisas... mas senti mais ainda a casa também me conhecendo. Me mudei e por um tempo me senti sem lar novamente, foi então que começamos a nos conhecer, eu e a casa, ela o meu ritmo e eu, o ritmo dela, os seus barulhos, por onde e que horário ela se tornava mais ventilada, mais agradável, em que momento ela começava a se aquecer, os barulhos que ela produzia, os barulhos do dia, o barulho do vento tentando entrar pela janela, o barulho do estalar da madeira das portas e móveis, a porta da rua se mexendo quando o vizinho mexe na porta dele, quantas e quantas vezes na primeira noite fui verificar se tinham entrado no apartamento, até que tranquei no meu quarto e deixei a casa resolver a suposta invasão... enfim (terceira vez), conhecer a variação na luz, o barulho da madrugada, da vizinhança, dos cães latindo ao redor, das crianças no colégio gritando "BOM DIA!!!" todos os dias às 7:15 da manhã... Ela também ia se acostumando aos meus horários, aos meus barulhos e ao meu ritmo, ao meu gosto em pendurar vários quadros e coisas na parede, ao pintar uma árvore no seu corredor, ao colocar minha coleção de imãs, meus livros, meus pincéis, meus  quadros, ao deixar a luz da cozinha acesa quando eu sentia medo, colocando cheirinho e ir tomando a casa para mim...
Quando ao final desse conhecer... quando eu já tinha aprendido muito sobre ela e ela sobre mim, eu pude dizer que eu tinha um lar. Eu tenho um lar. Um lar que dizem que é a minha cara...mas sei também que carrego um pouco de cada parede que me cerca... e pensando no que eu ainda vou colocar na parede ao lado da minha porta de entrada, deparo com a seguinte frase: lar é o lugar onde o meu coração está.

Pelo menos pra mim foi assim. Disso eu não acho, eu tenho certeza...
Esta é a árvore que eu pintei no corredor da minha casa.

5 desavergonhados:

Anônimo disse...

MEMÓRIAS COMPARTILHADAS SÃO EXPERIÊNCIAS VIVIDAS. Espero que as tuas vivências também contribuam para a minha caminhada...

Anônimo disse...

Estou fora do lugar onde nasci e da minha familia há 14 anos, mas o mais engraçado é que todas asvezes que chego na casa da minha mãe digo é sempre voltar pra casa , mesmo que por uns dias .
Bjoa
Noemy

Anônimo disse...

I

Muito bom, Lu. Mais uma vez me tocas e provocas reflexões muito escondidas, desapercebidas até, até a leitura de teu texto.

Tô pensando aqui que mesmo gostando muito de nossas conversas pessoais e presenciais, este efeito não acontece nestes momentos. Só quando leio o que escreves. Talvez eu esteja menos "protegido" quando leio teus escritos, em meu quarto, em meu canto de trabalho... ou talvez você esteja menos "protegida" quando escreve isso tudo, eu seu próprio "canto" (ficou dúbio e interessante, não acha?).

Muito possivelmente as duas opções acontecem...

Pôrra, somos complicados...


Marcus.

Anônimo disse...

II

...Fiquei refletindo sobre a idéia que tenho de "pertencimento".

Acho que mudei mais de 11 vezes até hoje. Acho que umas 15 vezes. Só de pois de casado já foram 4 vezes...

Antes disso, quando saí de casa aos 17 morei de favor por três vezes:

1)na casa de uma irmã mais velha - cujos contatos familiares anteriores tinham se dado numa relação de "mana mais velha" e irmãozinho caçula, e que agora tinha marido e um filho (que não mais era eu)- durou uns dois anos, no máximo;

2) na casa de minha avó materna, junto com mais um primo e duas tias. Minha presença não havia sido consentida lá, pela minha avó, mas fiquei mesmo assim, forçando a barra, e senti as consequências... durou um ano e pouco...

3) na casa do estudante universitário, a convite de um amigo que morava lá. Ele dividia o quarto com outras três pessoas. Eu era o quinto "inquilino". Dois dos demais não gostavam da idéia. A disputa por espaço era uma coisa animal, quase com rosnados... durou uns três meses...

Fora isso, dividi dois apartamentos e uma casa. Uma das vezes com meu irmão, as demais com uma mesma amiga.

Juntando isso tudo, agora percebo que não consegui me "unir" aos espaços que habitei, e nem aos vizinhos...

...Deixei as relações suspensas naquela tensão inicial dos primeiros dias de contato.

Só consigo me sentir realmente vinculado à minha primeira casa. Era pequena, de espaços reduzidos, manutenção por vezes ruim, mas lá reside até hoje a parte mais "enraizada" de mim nesse mundo. Já voltei até lá algumas vezes: até hoje minha voz ainda embarga quando chego até a porta, e tenho uma vontade enorme de entrar... mas nunca mais consegui, acho que desde a minha saída, jamais pude retornar de fato.

Fisicamente até voltei por duas ou três vezes a entrar, quando minha mãe ainda estava lá, mas a energia, a luz, os móveis, e parte dos inquilinos, eram outros.

Me pareceu agora que jamais me permiti aproximar novamente de um lugar como antes o fizera. Ou das pessoas. É uma perda dolorida ainda hoje, um choque que se mistura com o choque de ter de tornar-se adulto. Foi tudo ao mesmo tempo. Eu tinha 17 anos...

Marcus.

Anônimo disse...

III

Eu não estava preparado para o mundo.

Não sei direito como dei conta, ou como ainda sobrevivi, mas acho que foi em parte pela minha falta de "pertencimento" junto aos lugares e pessoas que se seguiram à minha primeira mudança de lar.

Isso me permitiu não "quebrar" de vez a cada recusa, a cada frieza, egoísmo, sadismo, indiferença ou conseqüência de meus atos, muitos deles por auto-boicote. É minha couraça, capa forte que não deixa passar certas coisas nem de cá e nem de lá.

Na casa de agora eu começo a me sentir "pertencente", ainda de maneira tímida. Assim como com os vizinhos, ou minha filha.

Planto aqui como o fazia lá. Aquele quintal até hoje me pertence, e deve guardar lembranças de meus mamoeiros e minhas roseiras. Aqui, minha sacada está repleta de plantas que plantei desde as sementes.

Interessante...

Aqui também estou adaptando meu "canto de leitura e reflexão", como tinha lá. E gosto de meus vizinhos, e me relaciono com eles...

Acho que estou cuidando das cicatrizes, que têm por mérito nos proteger um pouco mais de novos cortes, e por demérito reduzirem a sensibilidade...

Vou me aproximar melhor, me permitir. Correr e brincar na casa quando der na telha, escalar as portas, talvez pintar as paredes... deixar meu cheiro, e meus sentimentos gravados, junto com minha menininha. Ela e eu merecemos a minha maior liberdade.

Teu texto me trouxe tudo isso. Obrigado.

Marcus.