segunda-feira, julho 19, 2010

Anjo


Ela era a imagem de um anjo. Fabricada em uma tarde num salão. Cabelo liso para cabelos cacheados, de castanho para o loiro dourado. A boca, antes pintada só de vermelho, agora só admitia um rosa bem claro. As unhas, antes como garras sangrentas, agora eram cortadas e com esmalte quase sem cor. Ela tinha tido um sonho. Um sonho inquietante. Mas que a fez descobrir o sentido de sua vida. No sonho ela era um anjo, um anjo lindo que tinha grandes asas azuis e macias. Ela pensou: é um aviso. Um aviso dos céus, tal como o anjo Gabriel com Maria. Então eu sou um anjo. Vou ser um anjo. E partiu para sua transformação. E voltou a cumprir sua missão. Sempre que terminava seus afazeres, procurava conversar com aqueles que estavam usufruindo de sua companhia. E tal qual os anjos, perdoava-os em quaisquer de seus pecados. Eles saiam do encontro com ela renovados, ela era uma santa, venerada. Corria de boca em boca a fama da santinha. E todos queriam ter com ela. Fui testemnha de um encontro. Uma tarde, ela estava no batente de sua casa na Riachuelo quando um homem que vendia milho saudou-a:
- Boa tarde anjinho!
- Boa tarde! Ai..ai...queria tanto um milho seu...
Ele sorriu um sorriso incompleto, fruto de suas andanças pela vida e respondeu:
- Ora anjinho, é pra já!
- Não, não...eu não tenho dinheiro...

Ele então lançou um olhar de cima a baixo, não precisava ser santo como ela. Olhou-a e viu um corpo roliço, jovem e gostoso.
- Você pode me pagar de outro jeito, santinha.
Ela, percebendo o olhar lascivo, olhou para o milho com a mesma intensidade, fome é sempre fome, não importa do quê. Sua boca entreaberta, cheia de saliva e desejo, percorreu sua língua pelos lábios rosa-bebê e suspirou, dizendo:
- Tudo bem.
Ele, apressando as preliminares, preparou com esmero aquele milho da salvação de sua alma.
Ao entregar o milho pra ela, ela disse:
- Me dê um milho maior, do mesmo tamanho do que você guarda dentro das calças.
Nada mais justo, pensou ela.
Então, ele deu sua medida, a medida de um macho. E quando, ao olhar a cara dela de espanto, ganhou o dia, o mês, a vida, pois sempre tinha sido motivo de escárnio por todas as mulheres que tinham passado por seu caminho. Aquela mulher na sua frente, tal qual um anjo anunciador, afortunou sua vida.
Então, ela recebeu o maior milho que ele tinha... com os olhos de desejo, deu um sorriso que, de longe, me pareceu tão infantil, que consegui ver a criança que ainda era.

* escrito também há muitos anos em homenagem a um filme.

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