Acabei de chegar de um reencontro com um amigo meu que estava na estrada desde junho. Veio passar dois dias em Belém, e já vai pegar estrada de novo mas dessa vez por pouco tempo, semana que vem está aí. Mas não é bem isso o que eu vou falar. Ou melhor, talvez sim...ainda não sei muito bem...
Enfim, nesse mais de um mês que ele passou se atualizando no Rio, ele arranjou um tempinho para fazer um retiro espiritual com um grupo, numa comunidade ribeirinha, super afastada da capital. E quanto mais distante da capital, mais simples e natural a vida é. Pelo menos, eu acho...
De qualquer forma assim foi a experiência dele, ele começou a me descrever como era a comunidade há mais de cinco anos atrás e como está agora com o advento da energia elétrica e da famigerada e adorada televisão. Mas enfim, também não é bem disso o que vou falar. Talvez até seja, mas ainda estou vendo no que vai dar...
Enfim (de novo), ele me contou a forma de organização deles, da convivência na comunidade... como era bonito ver a transmissão de conhecimentos de pai para filhos e de mãe para filhas. Cada um transmitia à seus descendentes a sabedoria que rege o trabalho, que por sua vez, rege a vida em comunidade. Com descrições assim:
- são divididos como se fossem numa hierarquia de trabalho: alguns saem para pescar, outros, quando chegam os peixes, salgam para durar dias, outros fazem as redes de pesca, outros ordenham vacas para conseguir leite. Alguns cozinham o peixe, outros, se precisarem, pescam camarões e vão vender para comprar leite... "se na tua casa tiver leite e na da vizinha tiver café, vocês fazem um café com leite e tomam"...todos dizem que são parentes, basta você ser próximo vira parente, o equivalente, aqui em Belém a chamarmos de tia e tio os pais de nossos amigos... a ajuda é mútua, a comunidade funciona sobre e sob suas próprias leis morais...a noite, quando não tinham nada pra fazer, um visitava a casa do outro, ou ficavam em rodas pela comunidade com as crianças correndo, e todas as crianças eram cuidadas por todos os adultos...
Depois, como todo assunto, mudou. Começamos a falar sobre o desejo dele de morar sozinho e de uma dúvida que ele tem se ele vai conseguir sentir a casa que ele vai morar como um lar. E começou a dar um exemplo de uma tia que saiu da casa do pai, durante 11 anos morou em alguns lugares sozinha, mas quando pisou na casa do pai novamente sentiu "- aqui é meu lar". Apreensivo ele toma o exemplo da tia como uma possibilidade do que possa acontecer com ele. Dele não encontrar um lar fora da casa que sempre viveu com os pais...
Eu entendi a apreensão, é muito difícil a vida, ou sei lá quem ou o quê, definir um lar pra gente e assim seremos marcados o resto da vida por ele....o exemplo da tia dele me deixou também apreensiva, mas por outro motivo: eu não me senti assim. E comecei a pensar que ou eu sou uma desgarrada nata ou o conceito e o sentimento de lar é diferente para cada um... preferi ficar com a segunda hipótese.
O que aconteceu comigo, por exemplo, se eu for contar desde que nasci até o lugar que eu moro hoje, eu já morei em 11 lugares diferentes, eu brincava com a mamãe dizendo que ela era uma verdadeira cigana urbana, pois de uns anos pra cá, mal a gente tinha se acostumado a uma nova casa, quando víamos, ela já estava com a cuíra de mudança. Eu até comecei a me acostumar e curtir o ritual de passagem de um lar para outro. E não pensem que é fácil, pra mim pelo menos, era sempre muito difícil... Afinal, não é só você que transforma o lugar onde mora em lar e sim o lugar também te escolhe e te transforma como senhorio. Pelo menos, eu acho. Não acho só não, eu também senti e sinto isso...
Sempre que nos mudávamos eu passava por uma espécie de ritual de passagem. Me sentia por mais ou menos um mês em suspenso, como se eu não tivesse um lugar só meu, como se eu não tivesse um lar, como se eu não tivesse casa. Essas sensações me causavam muita angústia. Era ruim, até que me acomodova ao lugar e ele à mim.
Na minha última mudança, a mais significativa pois tinha resolvido morar sozinha pela primeira vez, eu senti isso, e senti medo...e muitas outras coisas... mas senti mais ainda a casa também me conhecendo. Me mudei e por um tempo me senti sem lar novamente, foi então que começamos a nos conhecer, eu e a casa, ela o meu ritmo e eu, o ritmo dela, os seus barulhos, por onde e que horário ela se tornava mais ventilada, mais agradável, em que momento ela começava a se aquecer, os barulhos que ela produzia, os barulhos do dia, o barulho do vento tentando entrar pela janela, o barulho do estalar da madeira das portas e móveis, a porta da rua se mexendo quando o vizinho mexe na porta dele, quantas e quantas vezes na primeira noite fui verificar se tinham entrado no apartamento, até que tranquei no meu quarto e deixei a casa resolver a suposta invasão... enfim (terceira vez), conhecer a variação na luz, o barulho da madrugada, da vizinhança, dos cães latindo ao redor, das crianças no colégio gritando "BOM DIA!!!" todos os dias às 7:15 da manhã... Ela também ia se acostumando aos meus horários, aos meus barulhos e ao meu ritmo, ao meu gosto em pendurar vários quadros e coisas na parede, ao pintar uma árvore no seu corredor, ao colocar minha coleção de imãs, meus livros, meus pincéis, meus quadros, ao deixar a luz da cozinha acesa quando eu sentia medo, colocando cheirinho e ir tomando a casa para mim...
Quando ao final desse conhecer... quando eu já tinha aprendido muito sobre ela e ela sobre mim, eu pude dizer que eu tinha um lar. Eu tenho um lar. Um lar que dizem que é a minha cara...mas sei também que carrego um pouco de cada parede que me cerca... e pensando no que eu ainda vou colocar na parede ao lado da minha porta de entrada, deparo com a seguinte frase: lar é o lugar onde o meu coração está.
Pelo menos pra mim foi assim. Disso eu não acho, eu tenho certeza...
Esta é a árvore que eu pintei no corredor da minha casa.