terça-feira, julho 11, 2006

O reflexo do outro: o tempo
Eu estava pensando na passagem do tempo em nossas vidas..ou na passagem das nossas vidas com o tempo...e como duas vidas vão se encontrando e desencontrando. É, muitas vezes, percebendo como o tempo passa para os outros e as marcas que deixam nos seus rostos e risos que vou percebendo que ele também passa em mim e me deixou e deixa marcas.
Há mais ou menos uns 10, 12 anos nos conhecemos...ele ainda uma criança vendendo doces em sinais de trânsito. Deveria ter uns 8, 9 anos. Um dia eu passei no sinal em que ele estava e ele quase não podia andar direito, perguntei então o que era aquilo e ele me mostrou um machucado muito feio em seu pé que ainda sangrava. Eu não consegui seguir meu caminho, fui a uma farmácia e comprei os produtos para um curativo. E então parei em uma esquina e lembro nitidamente dele agachado na porta do carro e eu fazendo o curativo no pé dele. Me senti muito bem de ter realizado aquilo que para mim seria uma “boa ação”. Criamos ali, um vínculo. Um vínculo que muitas vezes me deixou frustrada. Lembro-me de perceber o quanto ele se tornava agressivo quando eu não podia ou não queria comprar algo dele. Ele ficava com muita raiva, fechava a cara e não falava mais comigo. Eu só via o sorriso dele quando eu comprava algo que ele estava vendendo. O que me deixava com muita raiva e eu pensava (admito isso com muita vergonha hoje em dia), “como pode??? Eu fiz curativo no pé dele e ele ainda me trata assim??? Ele deveria ficar sempre agradecido!!” vejam vocês que “boa ação” que eu fiz, que queria gratidão eterna. Quanto aprendi com aquele garoto. Quanto aprendi com a raiva que sentia cada vez que ele me virava a cara. Quantas vezes deixei de comprar porque estava chateada com ele, por ele não se demonstrar grato. E então começamos a crescer. Os dois. Ele começou a ficar mais adolescente, e eu mais velha um pouco.
Vi exatamente a passagem do tempo nele. Não é uma pessoa que eu vejo todos os dias. Mas de vez em quando nos encontramos. Ele mudou de sinal. Está em outra esquina, mas continua trabalhando da mesma forma, com o mesmo produto. Aprendi a conviver com ele sem que o mau humor dele ou a raiva dele deliberasse em mim a minha própria raiva. E por várias vezes me peguei pensando: de onde vem tanta raiva? O que será que esse menino diria se tivesse voz? O que ele faria se pudesse fazer?
Porém o que mais me marcou não foi a sua barba, ou a sua nova altura e sim o seu sorriso. Agora é um sorriso sem dentes. Isso mesmo, o tempo passou, e seus dentes caíram. Não sei dizer o que me choca nisso, várias coisas. Mas os dentes dele caíram quase todos, e os que restam estão todos pretos.
Interessante que quando vi o seu sorriso desdentado pela primeira vez pensei que ele estava envelhecendo, o quanto ele tinha crescido e o que a vida tinha feito com ele. Não que eu não acredite que ele tem responsabilidades de escolhas em sua vida. Mas a nossa condição sócio-econômica é bem complicada pois tem uma tendência a colocar tapões em nossos olhos e correntes em nossas pernas.
Então em um dia eu estava indo para o trabalho.... e com a passagem do tempo já não sou mais a mesma e nem tenho mais a mesma disponibilidade para ajudar da forma como ajudei há uns anos atrás... A vida e minhas escolhas me permitiram que o tempo sempre me dê a impressão de que corre e de que não vou conseguir alcançá-lo e com isso muitas vezes não olho mais pro lado.
Voltando: um dia estava indo para o trabalho e então parei em um sinal perto do que ele fica e ele veio falar comigo. Estava com o semblante cansado, triste, deveria ser 8 da manhã. Ele me ofereceu algo, eu disse que não tinha dinheiro. Ele então me falou (e senti que não foi por mim e sim era ele com ele) que estava cansado demais, que não agüentava mais essa vida, que não sabia o que iria fazer com a vida dele mais e que não sabia o que iria fazer com a vida dele mais e que ainda iria fazer uma besteira. Na hora eu não lembro o que disse, só lembro de minha sensação dúbia. Eu não queria estar ali escutando isso porque me dei conta de meu próprio cansaço, e ao mesmo tempo eu tinha hora para chegar no trabalho, eu não queria que ele me dissesse aquilo justo aquele dia, justo aquela hora, e será que iria querer algum dia? Deixei ele ir andando... E fiquei olhando seu caminhar pelo retrovisor e segui. Foi então que meu coração apertou e me tomou um senso de urgência: preciso ir atrás dele. Deixei minha mãe no trabalho e saí atrás dele, dei voltas no quarteirão e não o encontrei. Fiquei uma semana sem notícias, lembro que passava pelo sinal dele e ele não estava e eu pensava, o que será que ele fez? Será que ainda vou vê-lo?
Uma semana e ele apareceu. Não toquei no assunto, não sei porque. Acho que eu não dava conta de falar com ele sobre aquilo. Mas ele voltou, está aí, vendendo, sorrindo desdentado (ainda arranjo um dentista pra ele, sem esperar pela sua gratidão, porque na realidade estou mais fazendo por mim do que por ele). Talvez os dentes dele me incomodem mais do que a ele. Será que ele quer ir a algum dentista? Então isso é meu.
Ele está lá...Deve estar lá agora... Às vezes sorri...às vezes está triste...às vezes com raiva...E vejo que eu às vezes estou assim também. Nossas vidas não tem nada em comum (ou tem demais) a não ser perceber quê o que o tempo fez com cada um de nós e que, independente disso, os sentimentos são inerentes a nossa condição, seja lá o tempo e o espaço em que vivemos.
Vamos continuar nossas vidas. Não sei como vai ser a minha.. E nem a dele...Nossa interseção é um sinal de trânsito. Onde ali, me deparo com o que o tempo fez com ele e ao mesmo tempo como num espelho, o que o tempo fez comigo. Ou o que é pior, ou melhor: o que cada um de nós fez com o tempo que tivemos e teremos.
(Vergonha)




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